sexta-feira, janeiro 21, 2005

Reminiscências

É incrível o poder que algumas músicas têm.

Aerials, do System of a Down, por exemplo. Puta musicaço, eis o que é. E tem o dom de me fazer voltar ao passado. Um passado longínquo, uma época em que não existia (ou ao menos não era conhecido no Brasil) System of a Down. Uma época anterior à época dessa música. Como isso é possível, vocês me perguntam. Eu não sei. Só sei que é assim.

Quando o carinha com cara de integrante da Al-Qaeda começa a cantar que a vida é uma queda d'água, eu me vejo em um túnel longo e escuro, e caindo bem no meio de uma festa. Uma festa de halloween que aconteceu há anos, no play do prédio da Priscilla. Eu gostava do Thiaguinho, mas ele não gostava de mim. Estávamos na sexta série.

Eu revejo a decoração toda, o salão iluminado com lâmpadas vermelhas, bolas negras, a mesa cheia de quitutes... As cadeiras próximas às paredes, a Cíntia botando Kiss pra tocar mesmo sob protestos de mais da metade do pessoal da festa...

A Cacá com o chapéu do irmão da Chu, a galera reunida no 'saguão' de um dos blocos fazendo campeonato, 'quem leva mais toco'... Ela perguntando pro Maffei se ele queria ficar com ela, ele dizendo que sim e ela reclamando que desse jeito ia perder... O semi-labirinto de cercas vivas e a Cacá, novamente, porém sem o chapéu, junto com o Rojtenberg, e eu vagando aleatoriamente, sem ter exatamente rumo certo, parando pra segurar vela por alguns instantes e depois continuando a vagar.

Eu lembro que eu detestava profundamente essas festas. Até o ano seguinte, eu não cheguei a fazer parte de nenhuma panelinha na escola, não em 'período integral'. E também não tinha amigos fora da escola que eu pudesse levar pra festa - ou antes, tinha apenas dois amigos: Meu primo Marcio e minha amiga Gisele, que morava em Jacarepaguá e nem sempre podia vir pra Tijuca. Não, eu não tinha muita vida social - ou antes, eu não tinha vida social. Minha vida social se resumia a essas festinhas e as ocasionais idas ao shopping. Festinhas-shopping-cinema. Eu odiava isso tudo, mas não conseguia deixar de ir. Eu não dançava, não tinha amigos, não me divertia, éramos muito novos para beber e eu era muito tímida. Mas estava lá marcando presença, sempre.

Aerials me deixa deprimida, justamente por me lembrar disso tudo. E depois que me deprime o bastante, me joga de volta pro túnel do tempo. Aerials, so up high, when you lose small mind you free your life. Início de 2003, lá vamos nós.

Iguatemi à noite. Encontro com o Sprite, vamos subir pra comprar? Vamos. Sobe Morro do Macaco, racha uma de 5, vamos pro estacionamento do Extra? Vamos. Eu não sei apertar, nem eu, chama o Ioga, que aperta como quem escova os dentes, Ioga vem, vamos pra escada perto da casa do Chine. Volta pro Extra, anda, anda, morga, anda, vamos pro Garage, Fild cuida do meu dinheiro. Mário, para de me zoar, eu sei que tô explanada! Ah, mas eu não tenho saco pra falar isso tudo. Estou morgada, estou com preguiça de falar, se bate verme é flagrante na certa, olha pra minha cara, olha pra mim, o que sou eu afinal?

Garage. Deita, dorme, morga, passa mal a noite toda. Acorda, vai pra casa com o dia amanhecendo, bêbada, chapada, sem dinheiro... Dinheiro? Fild, cadê meus 10 reais? Gastou... Não dá pra confiar... Calote no ônibus, casa, cama, morte por no mínimo umas 12h...

O WinAmp é meu amigo, embora cruel. Ele tira a música, e bota outra que também me joga de volta pro famigerado túnel. Spiders, vamos lá. All the life running through my hair...

Algum lugar entre Curitiba e São Paulo. São 1h da manhã, chove e faz frio. Eu, na minha saia de pelúcia vermelha e meu blusão branco de lã de ovelhas negras albinas, tremo de frio. Ele, também todo agasalhado, com o indefectível cachecol xadrez preto e cinza, treme de frio. Um discman entre nós dois, um cigarro para cada um. Frio, muito frio. Tomara que o ônibus saia logo. Pessoas estranhas passam, um cara idêntico ao Maverick só que ruivo sentado num banco lá na frente.

Saudades de um lugar para onde não vou voltar. Deixando o passado pra trás. Eu olho ao sul, esperando ainda ver as luzes distantes de Curitiba, mas Curitiba ficou pra trás faz muito tempo. Curitiba é passado. Abandonado, como abandonada está uma das coisas mais importantes que eu tive na vida. Fugi. Fugi, e quero fugir daqui também. Quero chorar, mas quero fugir das lágrimas. Olho pro Fernando. Ele me olha como quem pergunta se aconteceu alguma coisa. Vou deixar sua pergunta sem resposta, meu orgulho não me deixa responder. Vou fugir da sua pergunta, e assim fugir das lágrimas.

O motorista chama os passageiros e dá a partida. O passado fica pra trás. Aquele momento é só mais uma parada no expresso da vida. Vamos, vamos, estamos indo para um lugar de onde não vamos mais voltar: o futuro. O futuro... o futuro... eu tenho medo, muito medo, do futuro. Olho para trás, uma lágrima cai. 'O que foi?' Nada... Você não entenderia, você tem o que chamar de lar, eu não tenho lar. Eu não tenho nada, não tenho ninguém. Você tem sua família, a minha família sou só eu. Mas eu sou orgulhosa, eu sigo em frente, vou me desfazendo das pessoas como um foguete da NASA se desfaz das partes inúteis, rumo ao espaço infinito.

Eu preciso lembrar de tirar essas duas músicas do repeat. Aerials de novo. É um ciclo sem fim. E eu vejo de novo aquela festa, as luzes vermelhas, eu me vejo no meio do salão vazio, as luzes vermelhas, as luzes... sozinha. Sozinha, sozinha, onde estão todos?

Eles foram embora. Eles seguiram em frente, eles viveram. Só você, só você ficou presa ao passado, se deixando levar pela nostalgia, acreditando que aquela época é que era feliz. Sozinha sim, porque era assim que você se sentia então - e é assim que você se sente hoje. Sozinha. Sempre sozinha. Chove, a chuva turva a água da piscina.

De volta a 2003. Descer aquelas escadas sozinha... Tudo escuro, as luzes estão todas apagadas. A minha luz está apagada. Estou sóbria. Sozinha... O Extra está vazio, o Iguatemi está vazio, está tudo vazio e escuro... Chove, e o Garage está deserto. Amanhece, e não há ônibus para voltar pra casa...

O posto entre SP e Curitiba está vazio. Não há ônibus, não há carros, não há pessoas, não há luzes. Chove, faz frio, e eu estou toda de preto, de sobretudo, deixando a chuva molhar meus cabelos e minhas roupas. Sozinha.

Estou no alto de um prédio. Acho que é o prédio em que eu morava no Grajaú... Daqui posso ver a Grajaú-Jacarepaguá, é, só pode ser o Via Rafael. E estou sozinha, e ainda chove... Por que chove tanto? Essa chuva parece estar durando, sem parar, por anos... Estou no alto do prédio, há uma tempestade, estou sozinha...

Desligo o WinAmp. Me dou conta de que estou aqui, sozinha, na frente do meu computador. Sempre sozinha... é minha sina, eu sei.

Não chove mais em lugar algum - a não ser dentro de mim. Essa chuva não caiu, jamais, em lugar algum - só dentro de mim. Eu nunca estive verdadeiramente só - novamente, a não ser dentro de mim.

Me dá uma vontade desesperada de gritar, de chorar, de morrer. Mas se eu chorar, minhas lágrimas serão a chuva, que vai continuar caindo desesperadamente aqui dentro. Meus gritos serão os trovões, a morte seria a prisão eterna nesse inferno de lágrimas tempestuosas.

Eu me pergunto: quando foi que eu comecei a ser assim? Por que me tornei essa pessoa? Por que eu não me divertia nas festas, por que eu nunca tive amigos quando era mais nova, por que só consigo ter amigos se eles morarem a mais de 2000km de mim?

Por que sinto tanta falta do que fui, se ao mesmo tempo desprezo tudo o que meu passado significa? E por que, Deuses!, por que me sinto tão bem quando sofro assim?

Ligo o WinAmp de novo. Spiders. Volto pra parada de ônibus, e deixo a água molhar meu corpo, enquanto ando sozinha pelo estacionamento. Eu sempre fui assim.